top of page

Clube da Luta: mediocridade, revolta e autotranscendência


Thomas Cole, "O Curso do Império: Destruição", 1836.

Passei à leitura de Clube da Luta depois de ler Khadji-Murát, de Liev Tolstói. Fiz tão brusca mudança porque essa nova leitura fazia parte de um desafio que eu mesmo propus em um grupo de estudos, em que cada membro receberia de um outro um livro que muito provavelmente não leria mas que, por certo, contribuiria para o seu desenvolvimento intelectual. E deu-se que ganhei Clube da Luta, porque meus confrades sabem que eu dificilmente leria obra literária escrita depois do século XIX, muito menos uma tão popular.


A diferença que existe entre a literatura de Tolstói e a de Chuck Palahniuk, a meu sentir, é análoga à diferença que existe entre um homem adulto e um adolescente. O homem adulto possui alguma maturidade, ao passo que o adolescente é mais divertido e engraçado. Palahniuk encheu o livro de ideias profundas, algumas até mais que as de Tolstói, mas existe algo na forma de Palahniuk que o torna apenas um nerd entusiasmado. A profundidade de uma obra não está no tema, nem nas ideias aludidas, mas na forma como se tratam os acontecimentos, porque reflete o espírito do autor. A cena em que Liévin, um personagem de Anna Kariênina, passa a tarde ceifando os campos junto com os trabalhadores da fazenda é muito mais profunda que qualquer reflexão existencial em Clube da Luta. A mera descrição do rosto de Khadji-Murát, na obra a que me refiro no início, possui algo de nobre e primal, enquanto Palahniuk apela a uma escatologia juvenil.


Mas comparar um gigante da literatura com um escritor pós-moderno é covardia, e por isso passarei agora a elogiar Clube da Luta e extrair-lhe o melhor possui.


É uma leitura engraçada, estimulante e prazerosa. O enredo é inteligente e o autor possui domínio do tempo narrativo. Ele passeia entre o passado, o presente e o futuro com a mesma naturalidade com que caminharia dentro de casa, ora atiçando o leitor, ora dando conta de um fio solto da história. Ele, por exemplo, começa pela cena final, em que o protagonista está com um revólver na boca. Embora eu não goste muito do seu estilo, que é moderno demais, trata-se de um autor que dominou a arte de narrar.


Resumidamente, a história é sobre um homem comum, medíocre, que tem um surto mental e começa a extravasar a sua angústia através da violência. Ele não suporta a sua vida medíocre e sem sentido.


O meu desejo neste momento é morrer. Não sou nada no mundo se comparado a Tyler.

Sou impotente.

Sou um idiota e tudo o que eu faço é querer e precisar de coisas.

Minha vidinha. Meu empreguinho de merda. Minha mobília sueca. Eu nunca, nunca mesmo, contei isso a ninguém, mas antes de conhecer Tyler estava planejando comprar um cachorro e chamá-lo de “Companheiro”.

Isso mostra o quão ruim a sua vida pode ficar.

Mate-me.


Ele se sentia tão mal que toda vez que entrava em um avião torcia para que ele caísse, e invejava as pessoas que tinham câncer. “O que Tyler fala sobre sermos o lixo e os escravos da história é como me sinto.” Quantas pessoas na vida real não se sentem assim? Quantas pessoas não se sentem mortas por dentro porque só sabem ir do trabalho para casa e da casa para o trabalho num movimento tão automático que já se esqueceram de por que o fazem? A história do narrador (ele não tem nome) é a história de muitas pessoas.


Mas ele é um merda. Ele é o modelo perfeito do indivíduo que aceita tudo que a sociedade impõe ou pelo menos sugere. Ele tem um emprego sem graça, um chefe idiota e compra as coisas que vê na televisão, esperando completar-se com isso. Ele seguiu direitinho todo o script. Ele é totalmente conforme. E essa conformidade o sufoca de tal maneira que ele não consegue suportar. Ele começa a ficar doente.


Quando ele chega ao limite, surge Tyler Durden, uma segunda personalidade que é tudo que ele gostaria de ser mas tem medo. “Adoro tudo a respeito de Tyler Durden, sua coragem e inteligência. Sua energia. Tyler é engraçado, charmoso, forte e independente, e os homens olham para ele e esperam vê-lo no comando de seus mundos. Tyler é capaz e é livre, e eu não.” Quando ele vira Tyler Durden, ele é capaz de fazer tudo, de liderar um exército e praticamente tomar o país. Ele tem esse poder dentro dele e o suprime. Porém, nada é de fato suprimível, porque sai de alguma forma. Aquilo que você não reconhece sobre si mesmo acaba controlando-o. Dessa forma, quando o narrador dorme, Tyler Durden aparece e toma o controle.


Quantas coisas na sua vida que você tem ignorado acabaram tomando decisões por você? Quando você se recusa a encarar aquela verdade que o incomoda, ela passa a exercer uma influência enorme sobre você através de atitudes inconscientes. Não permita que verdades não declaradas controlem a sua vida. Confesse tudo a si mesmo, com uma sinceridade avassaladora, e assuma o controle. Seja tão honesto a ponto de ficar com vergonha. Essa é a cura das suas aflições.


Mas o narrador não tem coragem de olhar para si. E por isso cria Tyler Durden. O clube da luta é uma forma de extravasar o ódio, a angústia e tudo quanto esteja mal resolvido dentro do sujeito. As lutas são agressivas, mas chega um momento em que elas não são mais o suficiente. A dose de violência precisa ser aumentada. Então Tyler cria um exército de outros fracassados para iniciar o “Projeto Desordem e Destruição”. O objetivo do projeto é destruir a civilização, e eles, é claro, começam atacando os ricos. Obviamente, tudo se resume na inveja. Uniram a frustração de ter uma vida medíocre com a inveja sentida dos ricos e bem-sucedidos. Assim como outros desordeiros anticapitalistas, eles não querem se desenvolver e criar algo positivo para a sociedade, mas sim destruir o que foi criado por homens superiores a eles. É mais fácil. A certa altura, eles conseguem dominar um homem de poder que quer abolir os clubes da luta, e então Tyler diz:


Lembre-se disso. As pessoas em que você quer pisar, nós, somos as pessoas das quais você depende. Somos nós que lavamos suas roupas, preparamos sua comida e servimos o seu jantar. Arrumamos sua cama. Cuidamos de você enquanto dorme. Dirigimos as ambulâncias. Passamos as suas ligações. Somos cozinheiros e motoristas de táxi e sabemos tudo sobre você. Processamos seus pedidos de seguro e gastos do cartão de crédito. Controlamos todas as partes da sua vida.


Ou seja, o sonho desse homem medíocre que não tem coragem de viver sua própria vida e prefere se tornar um escravo, fazendo tudo o que seus pais, a escola e a igreja lhe disseram para fazer, é se revoltar contra tudo isso e estabelecer o seu próprio reino. Talvez o sucesso de Clube da Luta se deva à mesma razão do de 50 Tons de Cinza, tendo aquele buscado saciar o desejo de dominação dos homens, e este o desejo de submissão das mulheres.


Eu vejo os homens mais fortes e inteligentes que já viveram. E esses homens estão enchendo tanques de carros e servindo mesas.


Mas, de fato, não é isso revoltante? Tantos homens potencialmente gigantes se deixando limitar pelo medo e por uma autoimagem distorcida sobre si mesmos. O ser humano é como um robô cuja programação se baseia em crenças. Se as suas crenças forem do tipo “ganhar dinheiro é difícil”, “ninguém gosta de mim”, “pessoas ricas são más”, “eu nasci para ser só isso mesmo” etc., a sua vida nunca será agradável. E como são as crenças que determinam suas atitudes e conquistas, não interessa se você é forte e inteligente: você vai servir cafezinho. A programação, no entanto, pode ser alterada, com os conhecimentos certos.


Contudo, se o exército de homens criado por Tyler Durden se constitui de um bando de fracassados, como ele pôde então realizar tão grandes feitos? Aqui Clube da Luta nos ensina uma importante lição sobre liderança e propósito.


Tyler Durden dá a esses homens um senso de valor próprio e os reposiciona na linha da história. Agora, ao invés de escravos, eles são senhores. Isso se deve a um sentido de missão que incorporaram. Um homem que trabalha para outro homem se sente um empregado, mas um homem que trabalha para si mesmo tem dignidade – e não importa se esse “si mesmo” ocorre na empresa de alguém ou na própria. Os “macacos espaciais” de Tyler, seu exército de fracassados, eram muito mais explorados na casa dele do que o eram por seus patrões. Trabalhavam por muito mais tempo, obedeciam a uma hierarquia muito mais rigorosa, colocavam sua própria vida em risco diariamente – tudo isso sob condições de trabalho deploráveis. A diferença fundamental era que, agora, eles sentiam que pertenciam a algo importante. Agora eles tinham propósito.


E não apenas isso: eles lutavam por algo maior. Viktor Frankl usa o termo “autotranscendência” para designar um movimento de espírito que aponta para fora de si mesmo. “Ela denota o fato”, diz ele, “de que o ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo – seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar. Quanto mais a pessoa esquecer de si mesma – dedicando-se a servir uma causa ou a amar outra pessoa – mais humana será e mais se realizará.”


Eles tinham, portanto, um propósito autotranscendente, ou seja, uma missão cujo fim ultrapassava seus próprios interesses – algo muito além do mero desejo de comprar um carro, uma casa, comer bem, viajar e ser famoso. Apenas um propósito autotranscendente pode dar sentido à nossa vida.


Tendo então construído algo baseado nesse princípio, a sua ideia – o clube da luta – se eternizou e o transcendeu a ele mesmo. “Em uma centena de cidades o clube da luta funciona sem mim.” Tornou-se o que Elio D’Anna chama de ideia para sempre, a única forma pela qual uma empresa ou instituição pode vencer a voracidade do tempo.

30 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Inscreva-se para receber novas postagens

Obrigado!

bottom of page